Pablo Alcântara
Ascom do Sistema OCB/GO
O que faria uma fisioterapeuta com atuação em neurologia e geriatria a conciliar sua carreira na área da saúde com a pecuária leiteira? No caso de Karina Lopes, 38 anos, foi o desejo de preservar o legado deixado pelo pai. Dele, herdou a propriedade rural localizada em Bela Vista de Goiás e a tradição do cooperativismo.
“Minha história com a cooperativa começou logo depois que minha família adquiriu um sítio em Bela Vista, antes era em Senador Canedo. Quando adquirimos esse sítio meu pai já estava com algumas impossibilidades devido ao câncer no cérebro que tinha na época. O campo, as vacas, sempre foram uma paixão dele. Conquistado sempre com muita dificuldade. Quando ele faleceu, nos vimos com uma propriedade rural e não tínhamos muita noção, minha mãe sempre acompanhava meu pai, mas não participava muito das decisões e eu e minhas duas irmãs íamos mais para nos divertir, mesmo. Eu até ajudava meu pai em algumas coisas, como plantar uma árvore. Mas tinha zero noção de pecuária e agricultura”, conta Karina.
Para Karina, não houve um processo de sucessão, mas a força de vontade em manter o que o pai havia deixado, compensou a falta de conhecimento em administrar o negócio. “De um lado estávamos diante de uma propriedade que precisava ser tocada, com todos seus custos, desafios, diante de um mundo de dúvidas. Do outro, toda a emoção pela partida do meu pai e, principalmente, pela vida dele e todo amor que tinha pelo campo. Não queríamos vender a propriedade sem pelo menos tentar”, lembra. “A ideia era: vou pelo menos tentar, se não conseguir, vendemos, mas pelo menos eu tentaria de tudo, por nós e pela memória dele”, completa.
Cooperativismo
Na época, Karina conta que entre as irmãs, era ela quem tinha horários mais flexíveis e, sendo assim, assumiu a administração da propriedade junto com minha mãe. Com um negócio rural nas mãos, mas sem experiência, foi o apoio da Cooperbelgo (Cooperativa Agropecuária Mista de Bela Vista de Goiás) que começou a clarear a situação. “Ao tornarmos cooperadas um mundo de conhecimento se abriu e, junto com ele, a esperança. Participei de alguns encontros promovidos pela cooperativa e fiquei sabendo do Balde Cheio, fui atrás e esse projeto iluminou muito o caminho. Com visitas mensais alternadas entre agrônomo e veterinário, que iam na propriedade e apontavam erros, fazíamos planejamentos, fui aprendendo um novo mundo e as coisas foram acontecendo”, recorda.
Após cinco anos, conciliar as reuniões dentro do projeto Balde Cheio com o trabalho como fisioterapeuta, em Goiânia, ficou mais difícil. “Mas esse projeto, junto a todos da cooperativa, foram essenciais e me ensinaram o caminho das pedras. Comecei por amor, especialmente pelo meu pai, mas jamais conseguiríamos levar só com o amor, havia um mundo de negócios e técnicas, tanto na agricultura quanto na pecuária”, comenta.
Hoje, Karina é uma cooperada atuante, participa dos eventos e, junto com a mãe, faz parte do Núcleo de Mulheres Cooperbelgo. “A cooperativa ainda apoia muito, ajuda em tirar dúvidas, com todos os profissionais que estão sempre dispostos a nos atender da melhor forma. A união entre técnicos e cooperados é muito importante e muito forte, para nós, cooperados, termos esse suporte e a troca de experiências é muito enriquecedor e facilitador”, elogia. “Com certeza, queremos seguir com o cooperativismo, porque juntos somos mais fortes”, define.
Sobre o panorama atual da pecuária leiteira, Karina segue acreditando que o setor tem pela frente muitos desafios. “Mercado, política externa, condições climáticas, porém vejo que temos que estudar e conseguir eficiência na nossa produção, fazer a tarefa bem feita da porteira pra dentro da nossa propriedade”, opina.
Na contramão das estatísticas
Em julho, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) e o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) divulgaram o Anuário Estatístico da Agricultura Familiar. Em relação aos jovens trabalhando no campo, o levantamento mostra que o número despencou na última década.
Em 2012, o Brasil tinha 4,7 milhões de jovens de 16 a 32 anos que ajudavam nessa lida da roça, mas no ano passado esse número havia reduzido. Em uma década, o campo perdeu mais de 1 milhão de jovens trabalhadores e essa é uma força de trabalho importante para a manutenção da agricultura familiar. São quase 4 milhões de propriedades familiares em todo o país, que representam 77% dos estabelecimentos agrícolas.
O jovem João Paulo de Souza, acabou de completar 18 anos e vai na contramão do que tem acontecido no campo. Ele se orgulha da atividade rural e mantém no Instagram um perfil em que mostra o dia a dia da lida na fazenda. “Essa ideia surgiu depois que eu vi uns influencers do agro. Então, eu pensei em gravar também, mas claro, mostrar esse dia a dia da minha forma”, conta.
A família de João Paulo também faz parte da Cooperbelgo, em Bela Vista de Goiás, e trabalha principalmente na pecuária leiteira. “Desde de uns 8 anos de idade eu já tenho uma pequena noção do que é uma cooperativa, meu pai sempre entregou o leite para eles”, lembra.
O jovem afirma que o apoio da cooperativa foi fundamental para que desde cedo ele conhecesse como funciona uma propriedade rural e o negócio da família. “Sempre fui aprendendo com a assistência técnica que a cooperativa oferece. Não só eu, mas meu pai e minha mãe também, foi graças a isso que chegamos onde estamos”, afirma. João paulo também sempre foi incentivado e elogiado por participar da vida na fazenda. “Sempre tive o apoio e o carinho do doutor João (João Batista da Paixão), o presidente da cooperativa e os técnicos que me conheciam, sempre me parabenizaram e gostavam que eu ajudasse aqui na fazenda”, diz.
João Paulo está no 3º ano do Ensino Médio e pretende cursar algo relacionado ao trabalho na fazenda, como agronomia, por exemplo. Ele tem uma visão realista sobre a mão-de-obra jovem no campo e também das futuras lideranças que surgirão no cooperativismo. Ele acredita que somente parte daqueles que nasceram no meio rural vão seguir no setor, mas é preciso que eles conheçam os benefícios de investir em uma carreira na agricultura familiar. “Eu, desde que me lembro, estou dentro da cooperativa. Agora, atrair jovens que não são da área rural é um pouco mais difícil. Só quem vive essa realidade sabe dos desafios. Na verdade, eu acho que só quem tem uma grande ligação com o campo é que vai continuar com o cooperativismo por aqui”, opina.
Preocupação
A gerente administrativo financeiro da Cooperbego, Maria Teresinha de Abadia, explica que a sucessão na cooperativa é uma preocupação. “Nosso quadro social é de pessoas mais idosas, nós temos 60% dos cooperados nessa faixa etária. Os jovens filhos de produtores formam uma minoria na cooperativa”, conta. Mas, segundo ela, a cooperativa tem tomado algumas medidas. “Estamos fazendo treinamentos para os mais jovens e também adotamos uma escola com o projeto Cooperjovem, tentando impregnar essa cultura lá, para que eles sejam futuros sucessores”, diz.
A Cooperbelgo também acredita que precisa trabalhar a questão da sucessão não só de “pai para filho”, revela Teresinha. “Nossa intenção é que os cooperados comecem a entender que precisam realmente trabalhar a sucessão dentro das suas propriedades e que nem sempre é o filho que vai tomar conta, então, a cooperativa tem essa preocupação”, ressalta.
Presença de jovens na liderança é pequena
O cooperativismo brasileiro possui uma liderança madura. Esta é uma das constatações do Anuário do Cooperativismo 2023, publicado recentemente pelo Sistema OCB. De acordo com o levantamento, mais de 56% dos líderes estão na faixa etária acima de 50 anos e mais de 80% com idade superior a 40 anos, principalmente nos ramos agropecuário e crédito. Traçar planos de sucessão e processos estratégicos para identificar, preparar e desenvolver os futuros cooperados é fundamental para uma transição tranquila e eficaz na gestão.
O processo de sucessão em uma cooperativa é diferente de uma empresa convencional e, segundo o professor, palestrante e pesquisador do tema, Marcos Zanin, é muito mais complexo. “Há uma diferença muito grande entre herdar algo e suceder algo. Em uma cooperativa, não há um dono, mas há um conselho de administração com várias pessoas”, aponta.
Em entrevista concedida a Sistema OCB/GO, Zanin destaca que é necessário preparar com antecedência um quadro maior de cooperados e colaboradores para a sucessão. “Muitas cooperativas que eu acompanhei e que não existem mais, não se preocuparam com esse processo de sucessão. Convidaram associados despreparados para participar do Conselho de Administração, Conselho Fiscal. Passar esse bastão sem que você saiba como está essa empresa cooperativa é mais complexo. Quanto mais a cooperativa informar, capacitar, preparar com cursos e treinamentos o quadro associativo, mais fácil será estabelecer novas lideranças, principalmente os jovens”, explica.
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Além da Cooperbelgo, outras cooperativas trabalham a questão da sucessão, em Goiás. A Comigo, por exemplo, desenvolve há anos um projeto voltado totalmente para a sucessão. A Formação de Jovens Lideranças Cooperativistas da Comigo já está em sua 10ª edição.
O programa teve início em 2011 e foi dele que nasceu a comissão de jovens cooperativistas da cooperativa. O principal objetivo é despertar nos jovens o interesse pelos negócios do campo e capacitá-los, trabalhando com foco na sucessão familiar e no crescimento do movimento cooperativista.
Segundo a analista de desenvolvimento de cooperados da Comigo, Siomara Martins, os participantes da Formação de Jovens Lideranças desenvolvem atribuições como difundir o cooperativismo por meio de ações sociais e começam a participar mais da cooperativa. “Eles fazem reuniões da pré-assembleia e participam ativamente durante a Tecnoshow Comigo”, aponta.
Geração C
Fortalecer e incentivar a participação da juventude no cooperativismo também faz parte da missão do Comitê Nacional de Jovens do Sistema OCB, o Geração C. Em Goiás, o grupo possui representantes e a sucessão nas cooperativas também é um assunto prioritário.
Para o coordenador do Comitê de Jovens Cooperativistas – Geração C, em Goiás, Mateus Reis, o que eles querem não se trata diretamente de obter espaço para que a juventude assuma cargos de liderança de qualquer maneira, mas lutar para que as cooperativas estejam abertas para a visão e atuação dos jovens.
“Entendemos que a sucessão já está acontecendo, a passos lentos, mas está. A cogestão é o que buscamos, para que os jovens líderes aprendam e construam juntos com os gestores sênior. Assim, o quadro de governança vai mudando de uma forma melhor, visto que os atuais líderes sentem-se mais confiantes para atuação dos novos dirigentes”, opina.